A economia preta está redesenhando o significado de valor, prosperidade e eficiência no Brasil e na América Latina. Mais do que um segmento de mercado, ela se consolida como uma proposta de reorganização sistêmica, baseada em três princípios fundamentais: coletividade, reparação e regeneração. Essa nova gramática econômica nasce da ancestralidade, da criatividade e da força de pessoas negras que, historicamente, transformaram ausência de recursos em potência de inovação e que hoje protagonizam um dos movimentos mais consistentes de transformação social e econômica do país.
De acordo com dados recentes do Sebrae, o número de empreendedores negros (pretos e pardos) no Brasil cresceu 22% na última década, atingindo 15,6 milhões de pessoas em 2023, o equivalente a 52% dos donos de pequenos negócios no país. Estima-se que o afroempreendedorismo movimente cerca de R$ 2 trilhões por ano, segundo levantamento divulgado pela própria instituição. Essa força econômica, no entanto, convive com desigualdades estruturais profundas: empreendedores negros ganham, em média, 32% menos do que empreendedores brancos, e mulheres negras donas de negócio recebem menos de 40% da renda média de empresários brancos
Essas disparidades também aparecem no acesso a crédito e financiamento. A pesquisa realizada pelo Banco CAF, Instituto Feira Preta e Plano CDE, mostrou que 44% dos pedidos de crédito feitos por empreendedores negros brasileiros são negados, frente a 29% entre empreendedores brancos. Ainda que a maioria seja bancarizada, 64% dos entrevistados utilizam a mesma conta para o negócio e a vida pessoal, o que revela a precariedade e o racismo estrutural que ainda marcam o ambiente bancário tradicional. Mesmo assim, 89% dos empreendedores entrevistados afirmam que seus negócios são antirracistas, sinalizando que esse ecossistema não busca apenas lucro, mas também impacto social, regeneração comunitária e afirmação identitária.
Essa lógica de prosperidade é uma ruptura em relação ao modelo hegemônico de economia. A nova gramática da economia preta parte de uma epistemologia diferente, uma que entende o sucesso como redistribuição e não como acúmulo, e o crescimento como fortalecimento coletivo e não apenas individual. É uma economia que busca reparação por meio da criação de valor compartilhado, em que a cultura é um ativo, a ancestralidade é uma tecnologia e a sustentabilidade é inseparável da justiça racial. Como afirma Adriana Barbosa, fundadora do Instituto Feira Preta e uma das principais referências na agenda de inovação social no Brasil, “a economia preta nasce da potência de quem sempre precisou criar com poucos recursos, mas com muita inventividade. Ela propõe outra lógica de valor em que prosperar não é acumular, e sim redistribuir, fortalecer o coletivo e sustentar o ciclo da vida”.
Esses valores se materializam de forma concreta no Festival Feira Preta, hoje o principal ponto de convergência da economia preta no Brasil e na América Latina. Criado há mais de 20 anos, o festival evoluiu de uma feira de produtos e serviços afrocentrados para um verdadeiro laboratório vivo da nova economia brasileira. O evento conecta artistas, marcas, empreendedores, investidores e criadores em torno de uma economia criativa e regenerativa, que reconhece a cultura como vetor de desenvolvimento. O festival é também uma plataforma de visibilidade e fortalecimento de empreendedores negros, muitos dos quais surgiram durante a pandemia, período em que quase 60% dos negócios liderados por pessoas negras foram criados, em resposta à necessidade de geração de renda e autonomia econômica, de acordo com a pesquisa do CAF com a Feira Preta
Mais do que um evento, o Feira Preta Festival tornou-se um símbolo de transformação estrutural. Ele traduz, na prática, a filosofia da economia preta — em que cada produto, cada performance, cada rede de colaboração reafirma a centralidade da população negra na construção da nova economia brasileira. “A Feira Preta é uma tradução viva dessa gramática”, afirma Adriana Barbosa. “Aqui, a cultura é economia, a criação é política e o empreendedorismo é um ato de reexistência. Estamos construindo uma economia baseada na dignidade e no compartilhamento de valor.”
A chamada economia preta desafia as métricas tradicionais de crescimento e impacto. Ela propõe medir o sucesso não apenas pela rentabilidade, mas pelo impacto social e cultural; não pelo capital acumulado, mas pelo capital compartilhado. É uma economia de reexistência, mas também de futuro — um futuro que se desenha nas periferias, nas feiras, nos coletivos, nas comunidades criativas e nas redes de empreendedores que vêm transformando o modo de produzir e circular riqueza no país.
No Brasil, onde 112 milhões de pessoas se autodeclaram negras, segundo o IBGE, a economia preta representa não apenas uma oportunidade de inclusão, mas uma estratégia essencial de desenvolvimento sustentável e equitativo. Sua força reside em transformar desigualdade em potência criativa, exclusão em inovação e resistência em prosperidade coletiva.
O futuro da economia brasileira será mais diverso e regenerativo ou simplesmente não será. E o Festival Feira Preta é o epicentro dessa mudança, reafirmando que a economia preta não é apenas um nicho, mas uma nova gramática de valor, escrita a muitas mãos, por quem historicamente teve sua narrativa negada e hoje está reinventando as bases do próprio sistema.
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