Por Fernanda Carvalho*
Tem uma estranha morando comigo. Não sei ao certo quando ela chegou, mas este ano me fez companhia em todas as estações. Daquelas bem desagradáveis. Não as estações. A estranha que se instalou no sofá e não esboça intenção de ir embora. Mesmo eu tentando, gentilmente, convidá-la a se retirar.
Não adiantou a vassoura atrás da porta. Ela não arredou pé. Diante da presença indesejável, tento disfarçar com o meu melhor sorriso desbotado. Resgato um fiapo de brilho nos olhos nas raras fotos em que ela, a contragosto, também se faz presente. As selfies? Todas deletadas.
Sensação de estranhamento. CANSAÇO! Sentimento de exaustão, tempero de uma alma em frangalhos. Mas deveria estar tudo bem. Você tem tantos motivos para ser feliz. Eu só enxergo a estranha. A violenta sobrecarga da mãe solo insiste em passar despercebida até por mim. No fundo, a invisibilidade naturalizada me apaga aos poucos. O tempo me atropela, desgovernado. Em looping, um eterno sinal verde me exigindo que seja útil. Vivemos na Sociedade do Cansaço(quem não leu ainda o livro, recomendo!). Em um sistema violento de supercomunicação, superpositividade, superprodutividade que produz mais que esgotamento. Sufocamento.
A estranha está apertando meu pescoço. Não está me deixando respirar. A luz amarela grita reivindicando a tal pausa nutridora. Sinal vermelho para as minhas necessidades. Trabalho. Mercado. Açougue. Boletos. Tempo – e de qualidade – para os filhos. Tenho dois! E sou só EU, eu para tudo. E o banho do PET. Aproveita para tosar também. Tosa bebê.
Eu tenho vontade de chorar. Tem uma lágrima me acompanhando, desde o último verão, em borda infinita. Mas não transborda. Um rio represado. Livre está a enxurrada de preocupações que me invade até no banho. Uma cachoeira de afazeres e cobranças. Debaixo do chuveiro, vou fazendo a lista mentalmente. E ainda tem um rodapé sem tamanho das coisas que quero fazer e não tenho tempo. Já não tenho energia para os meus projetos, sonhos. Sofro por isso. Eu tô estranha.
A estranha que me encara, incomoda, tentou me convidar o ano inteiro para colocar a máscara de oxigênio em mim. Fazer a lista. A lista das minhas prioridades, das coisas simples que me reabastecem
Desperto para ser atropelada por mais um dia. Disposição? Só se fosse para correr… Para bem longe! Mas para onde? Onde eu pudesse resgatar as férias acumuladas há mais de uma década, pudesse dormir até esgotar a última gota de sono, onde os códigos de barras vivessem embaralhados. O fim das contas a pagar!
Por ora, não encontro ânimo para a única viagem que poderia estar fazendo. Para aquele destino onde só a gente é capaz de ir, quando tem coragem de mergulhar para dentro. A estranha me convida. Eu resisto, ainda agarrada à capa da mulher maravilha. Era minha personagem favorita na infância. Já me gabei do status de guerreira. Hoje, tento disfarçar a indignação quando escuto de alguém este adjetivo. Para mim já é quase um insulto. Minha vontade é gritar para mim mesma e para o mundo: Eu quero é PAZ! De preferência: PIX, PRAIA e PAZ! Nesta ordem, por favor.
Mas a gente quer fugir quando se depara com a estranha diante do espelho. Quando, além dos sinais do tempo, a gente não consegue fechar os olhos para as marcas da alma. Essas não têm botox e harmonização facial que resolvam. Nem sempre a gente sabe onde nascem nossas tristezas e angústias. Pouco importa, elas continuam nos acompanhando no avançar dos segundos, pelo viés da nossa intimidade. Da pele para dentro, cada um conhece bem as suas dores. Tem quem prefira fingir que não enxerga. E quem busca olhar os desconfortos, inquietações, questionamentos com um lampejo poético. Eu tenho tentado encarar a estranha. Aprendi que a sombra que tanto evitava, pode ser lugar de restauro. De reconexão comigo mesma.
Por aqui, o diálogo com a estranha só começou. A estranha que não é tão comunicativa, que deixou de se doar tanto para as amigas, está acima do peso. Com pressão alta, sente os quatro pneus arriar depois de um looooongo dia de trabalho. O ar que foi escapando aos poucos parece ser preenchido com um mau humor noturno. Tem horas que nem eu me aguento. O sono tem sido uma válvula de escape. A estranha tem me convencido a recusar programas divertidos no final de semana. Sorrateiro, o sono me domina até na tentativa de assistir filme e séries. Meu drama tá de bom tamanho?
A estranha que me encara, incomoda, tentou me convidar o ano inteiro para colocar a máscara de oxigênio em mim. Fazer a lista. A lista das minhas prioridades, das coisas simples que me reabastecem. Dormir. Cuidar melhor da alimentação. Tomar banhos demorados. E de sol. Meditar. Contemplar a natureza. Praticar atividade física. Respirar. Relaxar. REMAR!
Além do MAR, me mostrou que preciso abrir espaço na minha agenda para transbordar com palavras. Mergulhar mais fundo nos temas que me fazem refletir, parir histórias e compartilhar capítulos novos com o mundo. Acho que acabo de derramar nesta página em branco a lágrima que estava há tanto tempo contida. Gratidão ao site “BadeValor” por este espaço de transbordamento.
E você? A estranha já te convocou a fazer sua lista? Que, em 2024, você se coloque no topo das suas prioridades. Eu vou estar transbordando por aqui. Vamos juntos?
* Fernanda Carvalho, jornalista, escritora e autora do livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto Sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas. Email: livroaluzdamaternidade@gmail.com
Como é difícil reconhecer que existe diversas versões de nós mesma, até conviver com estranhas que se instaura de mansinho e é preciso coragem para driblar essas adversidades e não perde o seu Eu. Sensacional!
Parabéns a Fernanda Carvalho por este texto que é um convite a cada um(a) a se cuidar, a se cuidar e se escutar e descobrir que nosso Eu profundo precisa ocupar o lugar que merece em nossa vida: fazer nossa agenda.