Do Cine Manuelzão, passando pelo restaurante Veredas até a Praça Uma Estória de Amor, a obra de Guimarães Rosa (1908-1967) preenche cada esquina de Andrequicé. No pequeno distrito do município de Três Marias (MG), a 280 quilômetros de Belo Horizonte, mesmo aqueles que nunca leram Grande Sertão: Veredas sabem relatar algum detalhe da aventura entre Riobaldo e Diadorim. Sobre Manuelzão, o protagonista de Uma Estória de Amor, contam muito além do que diz a literatura roseana. É que justamente em Andrequicé viveu Manuel Nardi, o Manuelzão de carne e osso, inspirador de um dos personagens mais famosos do universo de Guimarães Rosa.
A diversidade cultural do distrito foi apresentada na XV Semana Cultural Festa de Manuelzão. Ao longo de oito dias, shows, filmes, quadrilha, contação de histórias, teatro, dança de ciganos, folia de reis, cavalgada e cortejo de carros de boi ilustraram a riqueza do sertão eternizado por Guimarães Rosa. Uma visita a locais citados pelo escritor levaram os presentes a se sentir nas páginas dos livros. Duas jovens encenaram, às margens do rio De-janeiro, o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim. A festa terminou nesse domingo (17).
A história de Guimarães Rosa com o sertão mineiro tem na boiada de 1952 um de seus mais importantes marcos. O escritor decidiu reunir um grupo de vaqueiros para realizar um percurso de 240 quilômetros em 10 dias, da Fazenda Sirga, a 60 quilômetros de Andrequicé, até Araçaí (MG), município vizinho a Cordisburgo (MG). Ao longo do trajeto, o escritor fez anotações sobre lugares e pessoas. É dessa realidade que Guimarães Rosa vai extrair a matéria-prima para lançar, há exatos 60 anos, Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, que posteriormente seria desmembrado em três volumes: Manuelzão e Miguelim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão.
A boiada também permitiu a Guimarães Rosa observar atentamente o linguajar sertanejo. “Ele anotou muitos termos, muitos ‘causos’ e muitos vocábulos sertanejos que vão ganhar vida na sua literatura. É através dessa linguagem, que ele vai apresentar para o Brasil um país ainda desconhecido de si mesmo”, analisa Telma Borges, professora de literatura da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
O texto de Guimarães Rosa mostra uma forma peculiar de escrita, recheada de recursos linguísticos, que faz com que muitos leitores considerem a leitura difícil. Segundo Telma, ele criou uma linguagem original, mas com correspondência na linguagem sertaneja. A professora explica que o escritor mineiro usa a gramática, mas não a normativa e tradicional. “Ele desloca os termos da oração e se sente um estranhamento. O leitor tropeça nas palavras. É mais fácil entender o texto lendo devagar, voltando atrás para recuperar o sentido das frases, ou lendo em voz alta. Daí é interessante como a leitura em voz alta produz uma significação muito mais acelerada. A literatura de Guimarães Rosa tem uma marca de oralidade, que permite a identificação com o sertanejo”.
Ao longo do evento, Telma conduziu alguns passeios e ministrou oficinas para alunos do ensino fundamental. Ela destaca o conhecimento que as crianças já têm de Guimarães Rosa. “Eles preparam ao longo de todo o ano atividades para a Semana Cultural, como teatro e contação de história. É muito explícito como a formação dessas crianças se dá a partir da literatura e sobretudo sobre a literatura de Guimarães Rosa”, diz.
Linguagem complexa – No distrito de 400 casas e 2 mil habitantes, o gosto pela literatura foi calejado pelo tempo. “Eu nunca gostei muito de ler. No meu tempo, as escolas faziam uma pressão muito grande pela leitura e acho que criei uma aversão. Não era prazeroso, era obrigado. Depois de muito tempo, começaram a organizar as rodas de leitura. A cada 15 dias, nos reunimos por duas horas para ler trechos de Grande Sertão: Veredas. Decidi ir a primeira vez por curiosidade e tomei gosto. É legal porque é uma linguagem complexa, mas lendo em grupo, fica mais fácil entender”, conta a moradora Maria Borges de Souza.
Esta linguagem complexa e particular atrai também o interesse de estrangeiros e a obra tem dezenas de traduções. Com a cultura de quem dominava seis idiomas e tinha algum conhecimento em pelo menos outros cinco, Guimarães Rosa foi bem duro com algumas versões, como a inglesa de 1963. “Não viram, principalmente, que o livro é tanto um romance, quanto um poema grande, também. É poesia ou pretende ser, pelo menos”, escreve ele em uma carta datada de 17 de junho de 1963.
Presente na XV Semana Cultural Festa de Manuelzão, o alemão radicado no Brasil, Berthold Zilly, anunciou que irá encarar o desafio de fazer uma nova tradução de Grande Sertão: Veredas. Professor e crítico literário, seu objetivo é justamente oferecer um relato mais fiel à linguagem de Guimarães Rosa. A única versão alemã da obra, lançada em 1964, narra os acontecimentos sem transmitir a originalidade da escrita do autor mineiro.
A linguagem de Guimarães Rosa também foi levada para as telas. Grande Sertão: Veredas virou uma série produzida pela Rede Globo em 1985, dirigido por Walter Avancini e com a atuação de Tony Ramos, Tarcísio Meira e Bruna Lombardi. A cena de abertura foi rodada em Andrequicé, às margens do rio De-janeiro. Mais tarde, o distrito foi novamente palco de uma grande produção: o filme Mutum, dirigido pela cineasta Sandra Kogut. Única película brasileira selecionada para o Festival de Cannes de 2007, a obra adapta o conto Campo Geral presente no livro Manuelzão e Miguelim. O conto apresenta a história de Miguelim, um garoto pobre que vivencia alguns eventos trágicos na infância até que desenvolve uma amizade com um médico e é levado para estudar na cidade.
O jornalista Pedro Fonseca, que recebeu uma comitiva da equipe de produção, lembra que alguns defenderam que o filme fosse rodado no estado de Goiás, argumentando que o sertão mineiro não seria mais o mesmo retratado por Guimarães Rosa. Ele levou-os para uma passeio, inclusive a pontos citados pelo escritor, o que teria convencido a produção. Mesmo assim, o jornalista lamenta a falta de preservação do meio ambiente. “Os eucaliptos tomaram a paisagem. Para mim, está provado que a falta de água na região se deve ao eucalipto. Não chove. Andrequicé está com problemas de abastecimento. As veredas estão secas e devastadas. Dá uma tristeza muito grande e um sentimento de impotência”, lamenta.
Evento – O evento é organizado pela Sociedade dos Amigos do Memorial Manuelzão e de Revitalizacão de Andrequicé (Samarra) e conta com o apoio do Ministério da Cultura. Nesta edição, a festa celebrou seus 15 anos e lembrou os 60 anos dos livros Grande: Sertão Veredas e de Manuelzão e Miguelim, que reúne os contos Uma Estória de Amor e Campo Geral. O aniversário das obras lançadas em 1956 é motivo para um sertão em festa. A data foi também celebrada na semana passada durante o FestiVelhas 2016, em Morro da Garça (MG), e na 28ª Semana Roseana, em Cordisburgo (MG), cidade natal do escritor.
Segundo o presidente da Samarra, José Antônio Vicente de Souza, a festa coroa o engajamento da cidade em torno da preservação da obra de Guimarães Rosa e do legado de Manuelzão. “A gente percebia que o distrito precisava de cuidados, ao mesmo tempo que tínhamos o desejo de preservar a história de Manuelzão. Daí surge a Samarra. Para revitalizar o Andrequicé através da cultura. Olha que legal, não é uma coisa bacana?”, explica José Antônio, que é também sobrinho da ex-mulher de Manuelzão.
A Samarra conta cada vez com mais instrumentos para estimular o mergulho na literatura roseana. Durante o evento, o Memorial Manuelzão, sediado na casa onde morou Manuel Nardi, ganhou um reforço: o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) entregou ao memorial uma versão digital das cadernetas de Guimarães Rosa. Elas contêm as anotações que serviram de base para a publicação de Grande Sertão: Veredas.
Um dos pontos altos da XV Semana Cultural Festa de Manuelzão foi o desfile das roupas produzidas pelas bordadeiras de Andrequicé. O grupo, que foi formado na primeira edição do evento com o apoio de Furnas, faz reuniões semanais. Até então, elas trabalhavam em painéis, capas de almofadas e colchas, sempre inspiradas em frases extraídas da obra de Guimarães Rosa. Para produzir as roupas, elas realizaram encontros desde o início do ano onde receberam orientação do designer de moda Marcos Pessoa Morais, de Belo Horizonte.
Márcia Alves, de 56 anos, é dona de um bar em Andrequicé e integra o grupo. “Bordo nas horinhas de descuido, como dizia Guimarães Rosa”, se diverte. “Cada dia que eu bordo uma frase de Guimarães Rosa, eu me sinto na faculdade. Acho que estou aprendendo mais”, acrescenta. Ela conta que a coleção de roupas apresentada foi toda inspirada no romance de Riobaldo e Diadorim e se emociona com o resultado. “Não pensava nunca que iríamos chegar nesse patamar”. (Léo Rodrigues – Enviado Especial)