Por Fernanda Carvalho*
Para desespero de minha mãe, a porta estava – como sempre – destrancada. Era manhã de sábado. Eu e André tomávamos café da manhã, sem pressa. Estávamos sentados na mesa da sala, bem de frente para a porta. Até que alguém girou a maçaneta. E foi entrando lentamente. Eu e André nos olhamos e acompanhamos o movimento da porta se abrindo, devagar. Numa fração de segundos, passou tanta coisa pela minha cabeça. A voz de minha mãe ecoava alertando para a loucura de deixar a casa aberta em um mundo que exala violência.
Um menino foi adentrando nossa sala, olhar distante, passos vacilantes. Foi desbravando o novo território da nossa casa em direção à varanda. Não sei se via um pedaço do mar, lá ao longe. Mirei nos seus olhos fugidios e acompanhei devagar seus pequenos passos. Tentava estabelecer uma conexão quando um grito rompeu nosso diálogo silencioso.
– Benjamim!!!!
– Tá aqui, respondi de pronto sentindo a aflição de quem o procurava.
Ela chegou atônita, visivelmente abalada e desconcertada. Pedia desculpas sem parar.
Benjamim pegou a direção do corredor e já ia entrando no nosso quarto.
– Desculpa! Meu filho é autista.
– Não precisa se desculpar, tranquilizei a vizinha que nunca tinha visto no meu prédio. No meu andar. Ele não fez nada demais. Estamos nos conhecendo.
Olhei nos olhos amendoados de Benjamim com uma vontade gigante de que ele me entendesse e falei:
– Você é bem-vindo na nossa casa. Volte quando quiser. Nossa porta fica quase sempre aberta!
Eles se foram para o apartamento no corredor ao lado. E eu queria, além de Benjamim, abraçar aquela mãe. Pedir desculpas por viver a minha vida da porta para dentro. A simpatia que sempre procuro ter com vizinhos foi estancada para aquelas bandas quando João ainda era pequeno e aprontou a mais grave das suas muitas travessuras no condomínio.
Era seu aniversário, voltávamos da rua, eu com um bolo pesado nos braços. Ao nos aproximarmos do elevador da garagem, ele bateu os olhos no vidro quebrado do botão que aciona o alarme de incêndio.
– Olha, mãe. Tá quebrado.
E, como um imã, foi encostando o dedo naquela caixa vermelha.
– Não mexa aíiiiiiiiii.
Ainda ouço aquele toque estridente. Meu pedido foi abafado pela sirene que causou um burburinho em todo condomínio. Três torres, cada uma com 19 andares. Seis apartamentos por pavimento.
Tenho esse defeito. Espalho afeto mas, quando me machucam, tomo distância e, muitas vezes, respondo com indiferença. Silêncio. Na esperança de que o tempo seja mesmo o senhor de todas as respostas
Enquanto tentava chegar no meu apartamento, via vizinhos desesperados saindo das suas casas, com roupas mais íntimas, pessoas com problemas de saúde, dificuldade de locomoção. Fui tentando desfazer o pânico de quem encontrava pelo caminho.
Assim que entrei em casa, com rosto pegando fogo e tremendo, coloquei o bolo em cima da mesa, corri para o interfone na tentativa de avisar ao porteiro que o alarme de incêndio havia sido acionado por engano. Linhas ocupadas. Tentei ir até a portaria. Elevadores disputados. Escadas movimentadas. Até que tive a ideia de avisar no grupo de zap dos moradores. Detalhei o ocorrido, pedi desculpas pelo transtorno. E fui bombardeada por alguns vizinhos, aqueles que, em geral, não têm filhos e se acham no direito de julgar a educação dos filhos alheios. Um dos comentários mais agressivos era de um morador que não conhecia mas morava no meu andar, do outro lado do corredor.
Confesso que, inconscientemente, isolei aquelas bandas. Quando esbarrava no elevador com um rosto desconhecido, com muito esforço conseguiapara dar um bom dia, seco, se o cumprimento partisse de quem morava do lado de lá.
Acompanhei Benjamim e a mãe voltarem para casa e confirmei que o comentário agressivo não veio da unidade deles. Senti vergonha do distanciamento que, por tabela, acabaram tendo de mim, como consequência das palavras duras de outro vizinho. Para falar a verdade, eu nunca os enxerguei. Tenho esse defeito. Espalho afeto mas, quando me machucam, tomo distância e, muitas vezes, respondo com indiferença. Silêncio. Na esperança de que o tempo seja mesmo o senhor de todas as respostas.
A minha resposta para Benjamim veio na forma de algo que para mim é valioso: um livro. No mesmo dia em que ele “invadiu” nossa casa e insistia em não sair do meu pensamento, conheci em um evento literário a escritora Jaqueline Santos (@jaquesantos2810).
Professora e autora de livros infantis, uma de suas obras é sobre o autismo. Jaqueline tem um, dois filhos autistas. E no processo de acompanhamento dos filhos, descobriu que o marido nunca havia sido diagnosticado, mas também vive no espectro. Com bom humor, ela resumiu a situação no nosso primeiro encontro: casei com um, levei três!
Atravessei o corredor, buzinei na porta da vizinha e dei de presente para Benjamim o livro Ted e Tuly, a rotina de dois irmãos autistas. Os personagens, em coloridas ilustrações, mostram que autismo não é doença. Tudo que precisam é de um olhar mais sensível, de amor, atenção e de respeito. Benjamim retribuiu o carinho com olhar cabisbaixo e um sorriso de canto de boca. Atendeu o pedido da mãe e me deu um beijo. Outras vezes que os encontrei no elevador, fiquei sabendo que Benjamim tem um irmão mais novo e adorou o presente. Abraça constantemente o livro.
Toda mãe sabe o potencial dos seus filhos. Nada é capaz de impedir que façam o que for preciso para que eles se desenvolvam e sejam felizes. Eu, a mãe de Benjamim, de Daniel, você e todas as outras… temos histórias e dores distintas, mas vivemos no mesmo espectro. No espectro do AMOR
Conhecer Benjamim me fez lembrar a amizade de Lucca com Daniel. Eles eram colegas da escola onde meus filhos estudaram logo após a separação. Eu já estava cansada de ser chamada pela coordenação com queixas sobre o comportamento de Lucca. Ele, que sempre foi um menino amável, estava rebelde, arredio, brigando com colegas, contestando educadores a ponto de chutar portas. Era a forma que ele conseguia expressar a dor do momento dilacerante que estávamos vivendo.
SOCORRO!!!!
Era o nome da doce coordenadora que sempre me acolhia. Estava aguardando, envergonhada, mais um atendimento. Esperava por outro comportamento negativo de Lucca quando ela confessou o motivo daquele nosso encontro. O que ouvi me fez chorar, muito mais do que das outras vezes. Lucca abraçou um colega novo com Transtorno do Espectro Autista (TEA) como ninguém na turma. Em trabalhos de dupla ou equipe, Daniel era sempre o seu primeiro nome da lista. Fazia questão de sentar ao lado do amigo e, quando a auxiliar tinha qualquer dificuldade, ele assumia prontamente os cuidados, acompanhando o colega até o banheiro, durante o lanche, nas horas de lazer no recreio.
A narrativa de Socorro me desmontou. Choro sempre que lembro como foi alentador, vivendo toda aquela guerra do divórcio, saber que meu filho não tinha perdido sua essência amorosa. Não contenho as lágrimas também enquanto busco as palavras agora.
Estava se aproximando o aniversário de Lucca. E eu já tinha ganhado meu maior presente. Pedi a Socorro o telefone da mãe de Daniel. Liguei convidando ele para almoçar e passar a tarde com a gente. Silêncio do outro lado da linha. Ela chorou. Disse que o filho não era convidado para as festinhas da escola. Que não saia sem a auxiliar, ela tinha trabalho, teria que ver a disponibilidade da acompanhante, que ele podia se assustar com o barulho do parabéns. Quebrei todas as objeções.
E lá estava Daniel, no meu carro, espremido que nem sardinha com os outros colegas de Lucca que vieram celebrar conosco. A auxiliar não pôde vir; Lucca e eu assumimos os cuidados. Ele almoçou, passou uma tarde divertida com os amigos. Reservamos a sala de cinema no condomínio. Daniel escapou do escurinho e preferiu ficar comigo. Lembro da nossa cumplicidade fazendo pipoca juntos. Ele se assustava com o estouro na panela, apertava os ouvidos e pedia para parar… eu oferecia um broto de milho salgadinho para ele comer. Então, explicava que se a gente não aguentasse o barulhinho, aquela deliciosa pipoca não ia nascer.
À noite, quando a mãe chegou pra buscá-lo, estávamos cantando parabéns, com palmas contidas, volume mais baixo e um amor transbordando por toda sala. Ela me agradeceu, choramos no mesmo espectro.
Lucca mudou de escola, perdemos contato. Dez anos depois, já na faculdade me traz noticias de Daniel. Ele também é um universitário. De longe celebro suas conquistas e toda luta e dedicação da sua mãe. E de todas as mães atípicas, que precisam ser mais típicas do que nunca para viver uma maternidade especial. Ter uma fé inabalável, força para vencer todas as adversidades, o cansaço, para vencer os dias que parecem que não vão ter fim. Uma paciência sem medida, resiliência renovada por cada avanço. O mínimo progresso se torna gigante diante dos insistentes nãos que recebem do mundo.
Toda mãe sabe o potencial dos seus filhos. Nada é capaz de impedir que façam o que for preciso para que eles se desenvolvam e sejam felizes. Eu, a mãe de Benjamim, de Daniel, você e todas as outras… temos histórias e dores distintas, mas vivemos no mesmo espectro. No espectro do AMOR.
- Fernanda Carvalho é jornalista, escritora, autora do Livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas. E-mail: livroaluzdamaternidade@gmail.com / Instagram: @fernandacarvalho_cs
Interessante seu texto, Nanda! Emocionante e muito real, tocante. Só as mães são heroínas dia e noite. São as que vivem o prazer da maternidade. Abraçam seus filhos como eles vieram ao mundo. São abençoados por Deus e todas as boas mães. Abraçar todos sem distinção. Você ensina a todos como devemos sermos gentis, prestativas e se colocando no lugar do outro como você fez e faz. Ajudando outras mães com seu acolhimento. Ensinando a seus filhos a serem compreensivos, solidários e humanos com os outros. Fiquei encantada com a atitude de Lucca mostrando que um pouco é muito. Benjamim entrou na melhor porta do prédio. Você é luz que ampara outras mães. Precisamos de pessoas como você, amor! 🌺🤞🏽😘🌹🤣🙏🏽🌷👋🏼🍀💧🏡🪴🙋🏻♀️💋🩵🏡💥
Fernanda envolve com as palavras. Amei o texto.
Eu parabenizo Fernanda Carvalho por este belo texto sobre a necessidade que temos de aprender a liberar nossa afetividade reprimida pelas couraças de supostas defesas que nos recobrem a sensibilidade, e parabenizo o jornal por ter nos brindado com esta preciosidade. Fica aqui o meu registro de gratidão pela escrita e pela diviulgação.
Visceral, sensível, cheia de amor e luta! Mulher sábia ❤️
PARABÉNS, Fernanda Carvalho! Que escrita sensível, tocante e emocionante, de notável impacto da razão e do sentimento para com a realidade das relações humanas! PARABÉNS, mais uma vez! Que a luz Divina esteja sempre a te iluminar, para que você seja veículo de tão sensata aspiração!🌷
Fiquei com um nó na garganta…
Gabriel, meu filho caçula era autista, morreu durante uma convulsão em maio de 2022, aos 28 anos e 11 meses. Por algum tempo, foi uma das pessoas autistas mais conhecidas do Brasil.
Uma vez, tocou a campainha da vizinha de baixo, entrou e se sentou à mesa. Ela nos ligou, perguntando se podia lhe dar almoço. Foi assim que começou nossa amizade com ela.