Por Fernanda Carvalho*
Mergulhei fundoem Feliz Ano Velho, escrito por Marcelo Rubens Paiva, por indicação da escolano ensino médio. Virar as páginas daquele livro foi um choque de realidade para minha adolescência. A história daquele jovem que, aos 20 anos, saiu tetraplégico de um mergulho em águas rasas só não foi mais aflitiva que a sensação de afogamento por sobreviver ao desaparecimento do pai, o engenheiro eex-deputado Rubens Paiva, durante a ditadura militar. Por maior que seja a minha sensibilidade e empatia, não consigo até hoje dimensionar a dor. A angústia. O vazio. O sufocamento.
Da água para o fogo. Eu devia ter pouco mais de 20 anos quando recebi a noticia de que meu primeiro sobrinho havia sofrido um acidente doméstico. Criança traquina, Fellipe brincava no quintal da casa da avó quando avistou uma garrafa vazia de refrigerante. Teve a ideia de acender uma bomba – tida como inofensiva ebatizada de traque bebé –e jogouno interior da garrafa. Inocente, ele não sabia que o recipiente tinha resto de gasolina.
Não vi a explosão, mas a bomba foi detonadaem mim quando recebi a notícia. Uma queimadura. Grave. No rosto. Felipe tinha sido levado para o hospital às pressas. Gelei. A extensão da lesão foi tão grande que era preciso morfina para que ele suportasse os curativos. Nossa dor maior erasaber que ele corria risco de perder a visão.
Foi desesperador. Nolongo e traumáticoperíodo de internamento, um livro fez parte do protocolo de tratamento. Sem poder enxergar, a minha leitura em voz alta era sua distração favorita. Li alguns, mas um em especial se tornou marcante. Marcelo Marmelo Martelo, de Ruth Rocha. Não tinha este livro em mãos; fui resgatando da lembrança trechos da história que eu amava na infância. A tentativa de distrair a dor deu certo. O choro e gritos silenciavam para meus flashes de memória. Comprei um exemplar na condição de que entregassem com a maior brevidade possível no hospital.
Não estava presente na entrega. Chorei quando minha irmã contou que, ainda sem enxergar, ele não deixou que ela abrisse de imediato o presente. Pediu para segurar o pacote, tateou com calma a embalagem… Depois de aberta, continuou alisando o livro que, nas outras visitas, eu gastei os dedos e a voz passando as páginas em looping.
Lipe era apaixonado pelas traquinagens poéticas de Marcelo, o personagem mais divertido de Ruth Rocha que gostava de reinventar os nomes das coisas. Ele saudava o novo dia com “bom solário”, dizia que “cadeira” não tinha cara de cadeira. Então, por que não chamá-la de “sentador”? E, se a gente pensar bem, não é que leite devia se chamar mesmo “suco de vaca”?
A leitura tinha efeito calmante. E quando Lipe não parava de chorar, lá ia eu ler mais uma vez. Conhecia a história de trás para frente.Não esqueço a queixa dele quando usei a criatividade na tentativa deesticar a narrativa.
– Tia, essa parte você inventou. Não tem isso no livro, não.
Os livros têm muito mais. A literatura não tem a obrigação de salvar ninguém, mas um livro invade, preenche e atravessa. É capaz de resgatar, acudir, de sacudir a alma de quem o carrega inocentemente no colo. Tira o chão. Mantem a gente de pé quando tudo parece perdido. Embevece. Eleva. Livro acalma. Informa. Reforma, no melhor sentido da palavra. Diverte. Enriquece vocabulário. Inquieta. Faz a gente viajar sem sair do lugar. Livro aconchega. Muda a paisagem. Amplia nossa visão de mundo. Esquenta e também pode fazer desaguar. Ilumina consciências. Carrega verdades sobre o autor, o leitor… sobre a vida! É passatempo, mas não permite que o tempo apague memórias. Pessoais e coletivas. Livro é arma para quem sabe o poder do conhecimento.
Não li Ainda estou aqui, mas claro que o livro está na minha lista de desejos desde que assisti ao filme que acaba de ganhar três indicações históricas ao maior prêmio do cinema mundial.Protagonizado por Fernanda Torres e dirigido por Walter Salles,o filme é uma adaptação da autobiografia de Marcelo Rubens Paiva, mesmo autor de Feliz Ano Velho, emmemória e honra à sua mãe, Eunice Paiva, uma advogada que acabou se tornando ativista política depois do desaparecimento do marido.
Contada com uma delicadeza inesperada, a história desta família é reflexo das brutalidades do Brasil nos anos 70. Espelha o drama de outras anônimas Eunices, Rubens e crianças que sofreram com o desaparecimento de familiares durante os anos sombrios da ditadura. O biografado do meu livro A Luz da Maternidade, o médico baiano Gerson de Barros Mascarenhas chegou a ser preso pelos ideais humanitários que defendia. “Prisão é a pior coisa do mundo. Não precisa o sujeito ser maltratado para ser um sofrimento terrível. O isolamento em um cubículo já é uma morte”, definiu em uma das entrevistas concedidas em vida. Se vivo estivesse, estaria prestes a completar 110 anos.
O medo de ter o pai arrebatado de novo pelos militares fez com que a família decidisse enterrar toda sua biblioteca socialista enquanto ele estava preso. Títulos importantes de medicina com capa vermelha – confundidos pelos inquisidores como leitura subversiva – tiveram o mesmo buraco como destino. Embrasaram em menos de uma hora em uma cova aberta no sitio da família. “Meu pai levou o resto da vida se lamentando. Era como se tivessem amputado uma de suas pernas”, me relatou o filho Claudio Mascarenhas.
Tortura. Prisão. Censura. Exílio. A violência destes termos pode não ser bem compreendida por quem não viveu este capítulo triste da nossa história. Livros, como Ainda Estou Aqui, têm caráter educativo. É preciso engrossar o coro da “ditadura nunca mais”. O sucesso do filmealimenta nossa esperança de que a civilidade vence a barbárie.
Emblemático que todo esse merecido reconhecimento internacional aconteça neste momento em que o mundo flerta descaradamentecom o autoritarismo. Para mim, uma das cenas mais marcantes do filme é quando a família posa diante de um fotógrafo para um veículo de imprensa que tinha expectativa de capturar uma imagem com semblante de pesar. Nós vamos sorrir, é a resposta de Eunice Paiva.
De outro plano, Eunice Paiva segue abraçando os cinco filhos e os ensinando a resistir a toda forma de violência. Depois do sequestro e morte, o silenciamento continuava sendo uma violência. O luto e a luta pelo reconhecimento da morte de Rubens Paiva duraram mais de quatro décadas. Eunice recebeu a certidão de óbito do marido 25 anos depois do desaparecimento, em 1971. Só agora a nova versão do documento declara que Rubens Paiva teve morte “não natural, violenta e causada pelo estado brasileiro”. Que seja atestado de um Feliz Ano Novo! E não só para a família Paiva.
- Fernanda Carvalho é jornalista, escritora, autora do Livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas.
- E-mail: livroaluzdamaternidade@gmail.com
- Instagram: @fernandacarvalho_cs
Excelente!!👍
Gratidão pela reflexão com tanta verdade e ao mesmo tempo amor que alcança o coração de quem se entrega a leitura.👏👏👏👏👏