Fernanda Carvalho*
– Sua BRUXA!, foram as duas últimas palavras ditas antes dele desligar o telefone depois de mais uma discussão acalorada.
Durante uma década inteirinha foi assim que enxerguei a “bruxa”, pelos olhos do outro. É incrível como temos a capacidade de julgar, rotular e condenar alguém que sequer nos demos ao trabalho de conhecer.
Algumas pessoas que conheciam a “bruxa” antes de mim até sinalizaram, tentaram abrir uma fresta nos meus olhos cerrados.
– Ela é uma pessoa muito bacana. Vocês se parecem nesse aspecto.
A “bruxa” era uma mulher madura; eu recém-saída da adolescência ainda vestida de uma inocência cega. Ela não sonhava em ter filhos; a maternidade sempre foi meu projeto de vida. Ela viveu muitos anos na França, conhece boa parte do mundo; eu guardo na memória as fotos com o rosto cheio de espinhas na Disney e uma viagem de bate e volta na Argentina que nem deu tempo de trazer um alfajor de lembrança. A “bruxa” trabalhava compulsivamente, eu também…
Tivemos dois, dois filhos. A “bruxa”, uma menina e um menino; eu, dois meninos. Quando meu mais velho nasceu, ela foi passar um mês em Paris. E eu fiquei cuidando de três. Estreava na sonhada maternidade com um recém-nascido no colo, me virando para cuidar dos dois irmãos dele, catando piolho, respirando fundo para dar conta de tudo….querendo pintar o baby blues de cor de rosa. Até quando precisei interromper o momento sagrado da amamentação para levar o mais traquina para costurar a cabeça. Ele subiu aos prantos do play com a babá deixando um rastro de sangue pela escada. Eu também tive vontade de chorar.
– BRUXAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!,tinha razões mais extensas que um enxoval de mãe de primeira viagem para achar que estava gritando por mim mesma.
Ainda queria acreditar que vivia o conto de fadas do casamentodas propagandas de TV. Era mais que comercial de margarina. Eu jurava que estava lambuzada em manteiga de primeira qualidade. Acreditava na lenda de que o sonho de quem me fez enxergá-la como “bruxa” era um natal em família. Com todos os filhos juntos ao redor da mesa, debaixo do mesmo teto….
– Todos juntos, pelo menos uma noite…, ele insistia.
Eu nem esperava a conclusão da frase para emendar:
– Deus me livre!!
Foi só depois da separação que o véu da cegueira despencou como um tsunami. Quando o casamento de areia virou farelo no tumultuado processo de divórcio, fui conhecendo a “bruxa” aos poucos. Ela me contou da sobrecarga de viagens a trabalho para dar conta das despesas, da solidão de cuidar de dois filhos sem suporte até quando eles adoeciam. Eu já conseguia me enxergar na cena em que ela chegava da emergência de madrugada, sentava no chão da cozinha para chorar depois de ter subido e descido escadas carregando os filhos do carro até a cama.
Pouco tempo depois, me vi protagonizando o mesmo filme. Na festa de 10 anos de Lucca, quando todos os convidados foram embora, desabei na cama achando que merecia o sono da mulher maravilha. Não conseguia dormir. A garganta gritava afônica que precisava ser tratada depois da minha tentativa de calar a dor o dia inteiro. Como a babá dormia em nossa casa na época, me levei para emergência pelas ruas desertas da cidade. Na recepção do hospital, colei em mim mesma o adesivo de acompanhante.
Alguns anos depois, vivi outra situação de colapso depois da meia noite. Desta vez, a babá estava de folga e Lucca urrava com um machucado no pé inflamado. Coloquei os dois no carro e, depois de longa espera na emergência, voltamos para casa sem atendimento. Lucca precisava fazer um procedimento na unha, levaria ponto e pedia para que eu segurasse a mão dele. João, ainda de colo, não parava de chorar porque não queria ver o irmão sofrer. Eu não conseguia me partir ao meio para atender as duas demandas e o médico sugeriu que voltássemos no dia seguinte. Eu queria chorar mais alto do que os dois, mas consegui me conter. Voltamos exaustos com um paliativo de curativo e a certeza de que eu teria queme remendar ao amanhecer, empurrar mais para frente os compromissos de trabalho e enfrentar de novo a via Crucis da emergência, assim que a babá chegasse para me socorrer.
Quando sofria desesperadamente por ver meus filhos com a outra, a “bruxa” endossava o coro da minha psicóloga garantindo que eu ia aprender a valorizar um tempo só para mim… foi quase me afogando em um mar de tristeza que resgatei minha menina e, com o alívio de um último suspiro, lembrei que ela gostava de andar de bicicleta… Ganhei novos ares ao descobrir que a mulher que se escondia por trás da mãe tinha também muitos outros desejos.
Eu e a “bruxa” temos muito mais que um ex-marido em comum…Ele ficou no passado; nós seguimos juntas. Por escolha e amor, cuidando uma da outra, em uma inusitada e essencial rede de apoio. Duas mulheres honestas e competentes, donas de uma força fenomenal para o trabalho, dispostas a cuidar de si, dos filhos e da família – que hoje, de fato, é uma só… No desejo velado de aproximar nossos filhos, nasceu a nossa irmandade.
Ela diz que me ama como filha mais velha. Que dedico tempo, atenção. Eu tenho o mesmo zelo e paciência que destino a minha mãe. E, de quebra, a cumplicidade de uma irmã. Somos confidentes e conselheiras. Compartilhamos intimidades, dores, medos, sombras e sonhos das melhores viagens. Já nos aventuramos em alguns destinos, a sós, com todos os nossos filhos, com meu atual companheiro ou agregando amigas. Amamos a natureza, gostamos de cinema, arte, música, somos fãs de Gil, Caetano e Maria Bethânia. Eu assisti este ano o show dos irmãos santo-amarenses em êxtase e reconhecendo meu agradecimento a ela… temos paixões, valores e aflições em comum.
Estava naquele pânico abafado, vivendo o isolamento da pandemia, quando o telefone tocou. Com uma voz serena, a “bruxa” contou que estava enfrentando um diagnóstico de câncer. Já tinha tomado todas as providências, seguia os protocolos para agilizar os exames necessários… continuou falando com uma firmeza que me paralisou, me fez desabar no sofá tentando esconder as lágrimas que escorregavam silenciosas entre as almofadas. Respirei fundo para disfarçar o medo que estava sentindo de perder minha malvada favorita.
Ao longo de todo tratamento, não teve uma linha de drama. E, mais uma vez, aprendi muito com a “bruxa” sobre coragem. Quando ela virou a página da doença, aprendi muito sobre sensibilidade e generosidade também. Depois do salto de fé da escrita de um livro gestado durante 18 anos, eu estava sem fôlego para o passo mais importante: investir na publicação. Talvez tivesse que adiar o lançamento mesmo tendo escolhido o mês ideal para o meu tema: maio.
– Diga quanto você precisa e como pode pagar. Você vai lançar seu livro agora e vai ser um sucesso!, determinou.
Dito e certo. E eu não sei se agradeci o suficiente por esse empurrão tão importante. A “bruxa” se tornou uma companhia maravilhosa nas minhas incursões literárias. Vibra, com olhos reluzentes das poucas amigas que, de verdade, celebram a conquista da outra. É a primeira leitora em muitas crônicas, aplaude e me arranca da zona de conforto quando preciso de uma crítica construtiva. Na última festa literária de Mucugê, sai do banheiro como cabelo amarrado para cima, todo despenteado, quando ela disparou:
– Nanda, você está linda! Vai assim hoje, sentenciou sem me deixar válvula de escape.
De repente, a “bruxa” se tornou minha personalstilyst. Emprestou acessórios e festejou o olhar de admiração de cada pessoa que me viu naquele evento sem disfarçar o espanto pelo penteado que não ousaria sozinha.
Eu vejo seis. Ela enxerga nove, de um jeito mais pragmático, racional que nem sempre sou capaz de concordar 100%, mas pondero, respeito e dou muito valor às suas opiniões. Gestora de qualidade no campo profissional, ela é minha coach no ambiente de negócios e na vida. Eu entrego, confio, aceito e agradeço. Aprendi que consigo avançar na minha visão de mundo quando coloco na mesma balança o ponto de vista dela e de outras pessoas que admiro sem perder de vista minha essência.
Eu também a vi passar por lindas transformações. Deu um basta no trabalho para cuidar de si, reviu conceitos, aprendeu a descansar, curtir a casa, adotou um cachorro sabiamente antes que o ninho ficasse vazio, assumiu os cabelos brancos e vive esbanjando charme por aí. Encara os problemas e sonhos de frente, sem fronteiras. Ela se basta! Gosta de palavras de incentivo, mas não precisa de aplausos. Faz que não escuta meus conselhos para fazer mais atividade física. Compartilhamos do bem da admiração mútua eestendemos o sentimentopor tantas outras mulheres que tocam o piano sozinhas, bem comoa indignação por homens que seguem escrevendo histórias de machismo mais deploráveis do que as que vivemos.
Vão além do egoísmo… Para garantir bons termos na separação, negociam com o sonho e a vida dos filhos, fazendo das mães reféns nos processos de divórcio. É revoltante saber que o pai de uma jovem que enfrenta um câncer de medula promete ser doador, mas barganha não pagar mais a pensão em troca do gesto. É triste, mas estou escrevendo sobre a vida real…
E, como talvez essa jovem que luta pela vida sonhe ainda com a chegada do príncipe encantado, essa crônica vem acompanhada de um spoiler: não julguem o livro pela capa. Nos tempos modernos, as princesas se salvam sozinhas. Ou com as “bruxas” que se revelam melhores amigas. Disfarçadas de bruxas ou fadas, existem pessoas que são nosso maior presente. Nivia é o meu há muitos natais. Por isso, ouso chegar de penetra na reunião de família em pleno dia 25 de dezembro para desejar feliz aniversário e dizer o quanto sou feliz por ter essa malvada favorita na minha vida.
- Fernanda Carvalho é jornalista, escritora, autora do Livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas.
- E-mail: livroaluzdamaternidade@gmail.com
- Instagram: @fernandacarvalho_cs
Parabéns Fernanda seus textos sempre.uma delícia de ler.
Nanda você é única!! Não me surpreende mais pois me encanto em cada escrita sua, nas suas atitudes supera ainda mais. Lembro de um aniversário de Maria Preta…quanto amor, imagine suas verdadeiras crias. Incrível como vê tudo como presente da vida. Sua fã, Te amo
Temos este poder: dar significado especial às pessoas que amamos. Obrigada pelas palavras de carinho, Vera.
Obrigada, querida.
Uau, que texto sensível e lindo. ✨❤️👏🏻
Obrigada pela leitura.
As pessoas, são presentes em nossas vidas, quando chega no natal ganhamos coisas inusitadas, já ganhei algumas coisas no amigo oculto, ganhei uma sapinho em forma de porta retrato. Foi uma coisa inusitada.
Viva os presentes que dispensam embalagens e datas festivas.
Quanta cumplicidade e companheiros cabem em palavras? Sem descrição de tempo e espaço para tão nobres gestos. Parabéns, Nanda! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
As palavras dão conta de tudo…
Nanda, sempre grudada até a última linha do texto. Obrigada por inspirar e nos conectar com narrativas que nos lembram que a vida é mais, e ao mesmo tempo, menos.
Nanda seu texto como tantos outros é maravilhoso, da vontade que não acabe, que seja sem fim! Parabéns minha menina!
Fernanda e a arte de saber escrever bem. Parabéns!
Uma linda narrativa que faz a gente se sentir dentro dela em algumas situaçoes comuns na vida de uma mulher ,mae,amiga,filha,profissional somos multiplas que nem uma lula e bruxa quando nos transmutamos mil . Os melhores presentes sao os sensoriais que pode ser um aroma ou um livro,musica ou uma paisagem algo que toque seu coracao e sua alma e conduza para um bem estar e traga boas recordaçoes.
Que crônica deliciosa e inspiradora, Nanda! Cheia de sentimentos, valores e partilha de experiências de vida! Sem dúvida, um presente de Natal!
Que maravilha de crônica! Me envolveu. Parabéns, Fernanda!!!!
Grata, Emile. Seguimos juntas através das palavras.
Eu li e ouvi sua voz. Maravilhoso – e instrutivo – depoimento, Fernanda!
Obrigada por estar aqui, Karla!
Parabéns, Fernanda. Linda a sua crônica!
Obrigada, Camila!!!
Fernanda Carvalho, escrever sobre o cotidiano com propriedade,beleza na narrativa e conteúdo que envolve o leitor! É mesmo uma bruxinha, nas letras e palavras!
Viva as nossas bruxas, Amparo!
Mistura de superação com aprofundamento de uma relação que inicialmente seria improvável, se transformando numa jornada de conhecimento e autoconhecimento. Simplesmente lindo!
Parabéns!!!! Narrativa envolvente!!! Amei a leitura!