Por Fernanda Carvalho*
Meu primeiro vestibular foi para medicina. Em uma época de muitas dúvidas, eu tinha uma certeza: queria ser médica. Só não sabia se atuaria como pediatra ou obstetra. Estaria presente nas salas de parto. Cuidaria de crianças. O nascimento sempre me encantou.
Recordo que no terceiro ano do colegial fomos provocadas por um professor a conhecer de perto a profissão que sonhávamos exercer. Em uma manhã ensolarada de sábado, eu e mais duas amigas desbravamosa frieza dos corredores de um hospital público em Lauro de Freitas. O gelo a que me refiro não vinha da climatização.
O pai de uma das minhas amigas era anestesista nesta unidade de saúde. As boas-vindas foram impactantes. No primeiro ambiente, me deparei com uma mulher negra, de pernas para o ar, já em trabalho de parto. Fiquei bem de frente para a parturiente e assisti o desabrochar daquela vagina. Parecia uma flor. Entre contrações e gemidos, o bebê nasceu. Rápido até. Grande. Saudável.
A mãe teve a emoção estancada quando ouviu do médico que o trabalho de parto não tinha acabado. Ela carregava outro bebê no ventre. Jamais suspeitara da gestação gemelar. Não tinha feito um exame de ultrassom sequer nos nove meses de gravidez. Nunca esqueço o desenrolar daquele parto. O bebê não nascia por mais força que ela fizesse. Recordo da cena – hoje inaceitável – do médico subindo na barriga latente da mulher deitada. Não sei precisar quanto tempo a angústia durou. Se para mim os minutos se arrastavam; para ela deve ter sido uma eternidade.
Nascer e morrer têm forças semelhantes. Ambos na fronteira da existência. Cada um em um extremo. Chegada e partida. Alegria e saudade
Até que o segundo bebê atravessou a flor do canal vaginal. Murcho. Mole. Disforme. Sem vida. Pela aparência, o obstetra logo sentenciou: já devia estar morto há algum tempo. Teve sorte de não ter tido uma infecção generalizada. O bebê que ela não sabia que carregava seguiu – de certo – vivo em sua memória. Na minha também. Mãe não esquece filhos, mesmo os que não vingaram. A dor da morte de um filho é algo que se carrega para toda a vida no colo vazio.
A cena absurda que testemunhei na adolescência tem nome. Manobra de Kristeller. O procedimento consistia em fazer pressão na barriga da gestante, no momento do parto, para acelerar a saída do bebê. Desde 2017, a manobra é inaceitável segundo as normas preconizadas para o parto natural pelo Ministério da Saúde. Agressiva, a técnica é contraindicada e oferece riscos para a mãe e o bebê.
Hoje é considerada violência obstétrica. Assim como outras práticas e condutas que desrespeitam e agridem a mulher na hora do parto. A má condição do sistema de saúde, por si só, é uma violência. Abusos físicos, sexuais e verbais, discriminação, negligência, comentários ofensivos também. E – acreditem –muitas vezes a violência é praticada por profissionais de saúde, remunerados para cuidar.
“Na hora de fazer foi gostoso” é uma das frases infelizes que muitas gestantes relatam ouvir durante o parto. Práticas que antes eram comuns foram sendo questionadas. E abolidas. Parir sem privacidade, sem a garantia da presença e suporte de uma pessoa de confiança da gestante (a lei do acompanhante está em vigor desde 2005 e é até hoje desrespeitada em algumas maternidades públicas), impedir o livre movimento durante as contrações ou que a mulher grite ou se expresse, tricotomia (raspagem dos pelos) e episiotomia (corte feito entre a vagina e o ânus no parto normal para facilitar a passagem do bebê) são algumas das situações que podem ser configuradas como violência obstétrica.
Então, que no nascer e no morrer, ecoe um respeitoso e amoroso silêncio. E que qualquer barulho a mais seja embalado com todo cuidado
Tão agressivo quanto um corte desnecessário é suturar a mulher além da conta após a laceração da vulva para deixar a entrada da vagina mais estreita. No passado, esse procedimento era batizado como “ponto do marido”, prática comum com o intuito de aumentar o prazer do homem nas relações sexuais pós-parto. Importante olhar para trás para constatar o quanto progredimos.
Comparando com a escala da dilatação, evoluímos um dedo. Ainda temos muito que avançar para garantir nascimentos respeitosos. Para amenizar tão extensa lista de condutas inadequadas celebramos recentemente o reconhecimento do Ofício, saberes e práticas das parteiras tradicionais como patrimônio imaterial. A decisão do Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (Iphan) foi unânime. Mestras da arte de partejar, mulheres, que fazem um trabalho anônimo e abnegado nos quatro cantos do país,estão sendo coroadas pelos conhecimentos tradicionais e religiosos com que amparam o nascimento.
Existe uma mística que ampara o parir…Abre-se um portal de autoconhecimento, força e renascimento. Existe a ancestralidade, o instinto, o corpo que responde para além da técnica e das informações. E existe também a rede de apoio que se forma ao redor desta mulher. A atuação das parteiras vai além da assistência ao nascimento de crianças. Por onde vão, carregam humanidade. Com recursos simples, espalham sensibilidade para amparar não só bebês, mas também acolher as mães, a família no que for preciso. Dão continuidade a uma sabedoria ancestral, ainda viva e fundamental.
O nascer merece respeito. E o morrer também. Que avanço ver nascer também em maio a Política Nacional de Cuidados Paliativos. A iniciativa inédita do Ministério da Saúde vai permitir a oferta de serviços de saúde a pacientes, familiares e cuidadores de forma mais humanizada. Autora do livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, a médica Ana Claudia Quintana Arantes é uma das maiores referências em cuidados paliativos no Brasil. Há muito ela promove reflexões sobre morte e finitude, temas tão necessários e incômodos para nós ocidentais.
O nascer merece respeito. E o morrer também. Que avanço ver nascer também em maio a Política Nacional de Cuidados Paliativos
Defende que os profissionais de saúde precisam ter mais preparo e sensibilidade para lidar com pacientes na eminência da morte. A promessa do governo federal é habilitar 1,3 mil equipes para essa assistência especializada com investimento de R$887 milhões por ano. Claro que até sair do papel, da planilha e chegar ao suspiro final de quem merece morrer com mais dignidade vai levar um tempo. Mas já sinto um sopro de esperança.
Nascer e morrer têm forças semelhantes. Ambos na fronteira da existência. Cada um em um extremo. Chegada e partida. Alegria e saudade.“Na vida humana talvez somente a experiência de nascer possa ser tão intensa quanto o processo de morte”, considera Ana Claudia Quintana Arantes. A médica que também é poeta cita Rainer Maria Hilke, em Cartas a um Jovem Poeta, para definir o instante final da fronteira da vida. “Seja como expectadores, seja como protagonistas, a morte é um espaço aonde as palavras não chegam”. Então, que no nascer e no morrer, ecoe um respeitoso e amoroso silêncio. E que qualquer barulho a mais seja embalado com todo cuidado.
*Fernanda Carvalho é jornalista, escritora, autora do Livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas.
E-mail: livroaluzdamaternidade@gmail.com
Instagram: @fernandacarvalho_cs