Por Fernanda Carvalho*
O texto da minha coluna de hoje estava pronto, mas uma inspiração carnavalesca roubou a cena. Furou a fila. Ficou pipocando na minha mente até que eu sentasse e escrevesse.
Este ano, passei longe da folia de momo. Só fui para o circuito um dia, a trabalho, acompanhando o desfile do Happy, bloco infantil comandado por Tio Paulinho que divulgo há mais de 15 anos.
Para além das pautas, entrevistas e da alegria contagiante dos pequenos foliões, enxerguei de nuance quem sustenta sacrifícios para ver os filhos em clima de festa. Na Bahia, quem não pode pagar por um abadá investe em uma fantasia ou adereço para apresentar aos pequenos a festa intitulada como a maior do mundo. A pipoca acontece do lado de fora das cordas. “Sempre gostei de carnaval, mas depois da maternidade, ficou difícil conciliar”, disparou uma mãe e publicitária que levou a filha. Leticia, 7 anos, uma pequena sereia navegando pela primeira vez no mar da folia.
Outros pais são veteranos mesmo nadando em mares mais turbulentos. Vencem barreiras para que seus filhos com necessidades especiais possam ocupar todos os espaços. Inclusive as ruas disputadas no carnaval. Encontram no Happy, mais que alguns quilômetros de diversão. A alegria vem acompanhada de respeito e cuidado. Crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), Síndrome de Down, com algum tipo de deficiência intelectual ou física, cadeirantes… elas vestem seu abadá e, simplesmente, sorriem alheias à maratona protagonizada o ano todo por seus pais.
Para a filha, que tem uma deficiência intelectual e motora, acompanhar o Happy, Fred preparou uma carruagem digna de princesa. As necessidades de Amanda, 16 anos, foram fazendo surgir na sua garagem inventos que fazem valer outros sorrisos. A Associação Meu Sorriso, bem como outros equipamentos, nasceram para garantir que pessoas com baixa mobilidade tenham o direito de viver o carnaval. E outras experiências que acontecem na cidade, o ano inteiro, com dignidade, ludicidade e emoção.
O reinado de Momo acabou. E a gente segue na luta, ao mesmo tempo ingênua e revolucionária. Tentando não perder o brilho. Nem que seja nos olhos
Cadeiras anfíbios do Meu Sorriso estão disponíveis para famílias de PCDs (pessoas com deficiência) que, vivendo em uma cidade litorânea, sonham com um simples banho de mar. A associação mantém ainda uma turma de natação onde paraaltetas são incentivados a superar seus limites. Na piscina, pais, irmãos e cuidadores também ganham momentos de relaxamento e de suavização na vida de quem abraça a missão de dar suporte.
A origem do Meu Sorriso vem disso. Da dor de quem já atingiu o esgotamento e viu a vida sem opções. Restrita. Do esgotamento, brotou o redesenho. Fred, o pai de Amanda, precisava encontrar um jeito de viver com sua filha da forma mais ativa e alegre possível. Foi redescobrindo e decidiu estender para outros a solução. A carruagem que faz princesas e príncipes felizes está disponível para outras famílias. Gratuitamente. Não só no carnaval… o ano todo! A dor nos torna mais criativos e solidários. Simplesmente melhores.
De volta ao mar de gente do Bloco Happy, encontrei Heleno. Convivemos há alguns anos em uma empresa onde ele era o responsável pela informática. Aquele super homem que tudo resolve. Ele me salvou no dia da minha primeira reunião quando quase afoguei o notebook da futura cliente derramando um copo d’água em cima da mesa. Gelei. Ele sorriu e me tranquilizou. Não sei se o equipamento dormiu de cabeça para baixo no arroz, se todas as minhas preces – para anjos, santos e orixás – foram ouvidas ou se Heleno era mesmo “o cara”. Pela minha gratidão, suspeito que todas as alternativas anteriores.
O notebook funcionou no dia seguinte. Eu voltei a respirar aliviada e ganhei a cliente!
Um respingo do banho de mangueira me fez despertar da enxaguada de memórias. Nas relações superficiais do mundo corporativo, nunca soube nada sobre a vida de Heleno até reencontrá-lo, muitos anos depois, com sua filha no bloco Happy. Ela tem Síndrome de Down e Heleno a Síndrome de Super Pai. Uma raridade em lares de crianças especiais, onde as mulheres vivem ainda mais sobrecarregadas em consequência do abandono paterno.
De ano em ano, eu os reencontro no bloco. Antes pequena, Julia já é uma pré-adolescente. Com um sorriso capaz de dar um up em qualquer um simplesmente olhe para ela, que a perceba. Ao avistar o caminhão do carro pipa, Julia estendeu os braços para que o pai a carregasse.
– Você já tá grande, disparei em uma frase ingênua e infeliz.
Ela respondeu com um sonoro: “não tô, não”, me entregou o que tinha nas mãos e pongou no colo do pai. O super Heleno aguentou firme a filha nos braços, pulou como se carregasse uma pluma em direção ao banho refrescante que ela tanto desejava. Acho que ele também… O celular que levava na mão para registrar cada sorriso da filha voltou com respingos. Pouco importava. O momento está registrado em uma memória que vence a quarta-feira de cinzas. Só ele sabe o peso e a alegria daquele e de tantos outros momentos de cumplicidade. Meus olhos marejaram.
Também molhada, voltei para cima do trio elétrico. Do alto, vi outro pai de uma criança com down sintonizado com uma cordeira, que se divertia como se não houvesse amanhã. Os filhos podem ter ficado em casa, pensei. A criança daquela mulher se divertia e era vista, reconhecida naquela troca de olhares.
Corta! Em uma emissora de TV, vi os olhos do governador do estado Jerônimo Rodrigues marejarem ao falar do desfile de outro bloco, o Me Deixe à Vontade. Do alto do seu cargo público, ele pisou no chão da avenida ao lado de foliões que, superando todas as adversidades e deficiências, fazem questão de abrir alas para a felicidade. O governador prometeu políticas públicas. É o que se espera para despertarmos deste “macetando apocalíptico” que é a vida real.
Em uma breve análise sociológica que li nas redes sociais, “o Carnaval se divide entre dois grandes grupos: o dos que mijam na rua e o dos que precisam dormir em cima do mijo”, para garantir o pão nosso de cada dia. Há quem não queira acordar da “fantasia eterna” sem enxergar o inferno dos que sustentam o paraíso das minorias.
O reinado de Momo acabou. E a gente segue na luta, ao mesmo tempo ingênua e revolucionária. Tentando não perder o brilho. Nem que seja nos olhos.
- Fernanda Carvalho é jornalista, escritora, autora do Livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas. E-mail: livroaluzdamaternidade@gmail.com / Instagram: @fernandacarvalho_cs
Marejei daqui o seu depoimento, Nanda! Só os sensíveis como Tio Paulinho, você e quem são pais de pessoas com alguma deficiência sabem o que passam. Bom mostrar como brincam as crianças e jovens, o que passam nas suas vidas. Muito nobre o que você observou no bloco das crianças. A falta do governador e prefeito para quem não estão pulando na pipoca, nos camarotes. A falta de verbas e olhar melhor para quem tem suas limitações. Ganham trilhões de dinheiro e ignoram o lado social de quem tem os mesmos direitos. Espero que seu texto toque os corações de quem não passam o que essas crianças e tantos passam. O Carnaval de Salvador não é para pobres, deficientes, idosos…!! Holofotes só para os mesmos e famosos de sempre. É preciso rever essa festa para que as crianças vivam felizes na multidão. Todos têm que se colocar no lugar do outro. 🪴🤞🏽🌶️👍🏽🏆🎶😘💐🏠😢🤔
Fernanda, você fez uma belíssima síntese do que é ser família de alguém que requer cuidados contínuos. Não é fácil pertencer a vida social. Mas, a escolha não pode ser “ficar em casa”. Precisamos viver, Precisamos encontrar como cuidar de nossas mentes.
Obrigado pela bela leitura sobre noss o trabalho com o Meu Sorriso: @projeto.meusorriso.
Fernanda sendo Fernanda. Sempre sensível a dor alheia e com olhar de humanidade por onde passa.
Que texto lindo e com várias nuances 🫶🏼
Um texto concreto e cheio de sensibilidade como é a autora dele, Nanda. Muito obrigada por traduzir a dor do outro em palavras e transformar em algo mais leve.
Fernanda, completamente visceral e linda!