Por Francisco Nelson Castro Neves*
No final do ano é natural reflexões sobre a experiência do passado recente e as expectativas do novo ciclo que se inicia. O contexto global de tensões geopolíticas, com expressão violenta de guerra, demonstra a gravidade da quadra histórica que vivemos, na qual a questão energética é central para as nações. O Brasil viveu em 2024 amplas discussões sobre o desenvolvimento energético, num ambiente conflituoso, ainda com grandes incertezas. As tomadas de decisão, no entanto, devem buscar um rumo qualificado e compromisso com uma transição energética justa, inclusiva e equilibrada, orientada pelos princípios constitucionais e racionalidade econômica na regulamentação setorial.
Os desafios de elaboração das políticas públicas, regulamentação e gestão no segmento energético convivem com forte interesses corporativos e patrimonialistas, nem sempre republicanos, os quais merecem grande atenção de toda a sociedade. No Congresso Nacional, as expressões do corporativismo e patrimonialismo desabrocham com desenvoltura e influenciam significativamente as políticas públicas do setor de energia. Em recente decisão foi aprovado o PLnº 3.149/2020, o qual modifica a Lei nº 13.576/2017 (RenovaBio), e agora está na Presidência da República para sanção. O projeto datado de 2020 ficou parado até de 2024, quando o interesse dos industriais da cana de açúcar foi acolhido através de emendas que criminalizam o segmento de distribuição. A partir daí o ritmo de tramitação ganhou velocidade supersônica e antes de fechar o ano foi encaminhado para sanção.
O mercado de combustíveis no Brasil é marcado por forte concentração econômica, os preços praticados são livres, não há regulação de preços, os quais variam de acordo com a oferta e a demanda por produtos
O agravamento do processo de penalização das distribuidoras de combustíveis, previsto no PL nº 3.149/2020, especificamente os artigos 7º, parágrafos 2º, 5ºe 6º; associados aos artigos 9º, 9º-B e 9º-C, expressa a cobiça pelos CBIOS (títulos de descarbonização) em detrimento dos interesses dos consumidores de combustíveis e não convém ao interesse público. O que se verifica é que agrava a desorganização da estrutura do estado presente do RenovaBio, abusa do poder de polícia administrativa gerando insegurança jurídica com impacto no aumento da concentração econômica do mercado e repercussão no abastecimento regional de combustíveis, criando condições estruturais para majoração dos preços finais dos combustíveise impacto negativo na economia popular.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) é uma instituição de regulação econômica e não tem atribuição legal direta e nem habilidade técnica para atuar nas políticas ambientais, assim como também não atua na regulação do mercado de títulos financeiros de nenhuma natureza.
Ao classificar como crime ambiental a incapacidade financeira das distribuidoras de combustíveis para adquirir títulos de descarbonização (CBIOS) e impedir que fornecedores atendam as distribuidoras em dificuldade, o referido PL provoca na prática a insolvência das empresas, expondo o serviço público a riscos administrativos injustificáveis. O furor punitivista da proposta tem efeito direto na judicialização das controvérsias, com impactos negativos na percepção de equilíbrio e justiça necessária à administração pública.
O rito sumário de condenação antecipada e penalidades ampliadas em mais de cem vezes (5 milhões para 500 milhões de reais), relativas à atividade que não guarda relação direta e racional com a finalidade para a qual os agentes econômicos foram autorizados pela ANP, atividade de distribuição, representam um abuso do poder de polícia administrativa sem precedente na história do Estado brasileiro. Verifica-se evidente agressão direta ao capítulo da ordem econômica e dos direitos individuais da Constituição Federal de 88, à Lei das Agências Reguladoras aprovada em 2019, à Lei de Liberdade Econômica de 2019, entre outras.
O mercado de combustíveis no Brasil é marcado por forte concentração econômica, os preços praticados são livres, não há regulação de preços, os quais variam de acordo com a oferta e a demanda por produtos. A presença destacada de empresas de grande porte, com poder relevante de mercado no segmento de distribuição, acaba por influenciar de forma significativanos preços finais praticados junto ao consumidor. Existem 184 distribuidoras autorizadas a atuar no mercado nacional, três delas têm participação no volume de vendas no mercado interno superiores a 55% do total de combustíveis comercializados no país, e as outras disputam o restante do mercado. São mais de 45 mil postos revendedores de combustíveis instalados em praticamente todos os municípios. A maioria das cidades tem até 20 mil habitantes, perfil correspondente a 69% do total das cidades. Nestas, os postos de combustíveis têm um volume de vendas pequeno, de escala comercial não atrativa para as grandes distribuidoras de combustíveis e são abastecidos pelas distribuidoras regionais, com preços razoáveis e qualidade de produtos.
O artigo 9º-B do PL nº 3.149/2020 impõe obrigação aos fornecedores das distribuidoras de não suprir suas demandas por combustíveis com base em uma “lista de inadimplente” a ser publicada pela ANP. Assim, por obrigações impostas a terceiros (fornecedores), busca-seliquidar as distribuidoras regionais, sem direito à defesa e ao contraditório, baseado na presunção de má-fé. Essa engenhosidade regulatória, sem nenhuma racionalidade econômica, é estranha ao arcabouço normativo brasileiro. É um mecanismo de coação e absolutamente inconsequente, pois anuncia o agravamento da concentração econômica, com repercussão grave e de difícil reparação para a economia popular do país, no que diz respeito à regularidade do abastecimento e aos preços dos combustíveis.
Espera-se que em 2025 o RenovaBio seja aperfeiçoado, alinhando-se com a política nacional de crédito de carbono e a efetiva descarbonização da matriz de transporte brasileira.
- Francisco Nelson Castro Neves é diretor-executivo da Associação Nacional dos Distribuidores de Combustíveis (ANDC), engenheiro agrônomo e mestre em Bioenergia, e foi superintendente de Abastecimento e de Fiscalização da ANP