Fernanda Carvalho*
Ganhei um risco de presente do meu filho. Uma tatuagem que diz tanto sobre mim e sobre a releitura que tenho feito da vida. A inspiração para a minha nova tatoo nasceu junto com meu livro gestado por 18 anos. Os boletos adiaram também o sonho de imprimir mais uma arte na pele até que Lucca resolveu me dar um presente de aniversário inusitado.
Viajei no tempo enquanto Rick, um tatuador sensível que se tornou amigo do meu filho, materializava o desenho que eu já tinha traçado tão nítido na minha imaginação. Uma mulher por trás de um livro aberto, de onde brotam flores do campo coloridas dando vida à frase VEJO FLORES EM VOCÊ.
Voltei no tempo e me vi respondendo à pergunta de minha mãe quando fiz minha primeira tatuagem. Estava me recuperando de um divórcio doído e de uma longa e avassaladora depressão que quase me roubou a vida. Tinha sido convidada para palestrar sobre minha volta por cima no Dia da Mulher em uma empresa de saúde. Minha mãe foi minha convidada de honra. Ao sairmos, antes de almoçar, paramos em um estúdio sem que ela imaginasse o arrojo que estava nos meus planos.
Há alguns anos, eu jamais cogitaria estampar na pele uma tatuagem. Não sei se por preconceito. Não via necessidade de marcar meu corpo, ainda mais com algo definitivo neste mundo de tanta transitoriedade. Até que consegui colocar a cabeça para fora do casulo da depressão e entender o significado da BORBOLETA na minha vida. O sentido do que perdi e ganhei no dia 4 de dezembro. Dia de Santa Bárbara para os Católicos. Iansã no Candomblé. As dolorosas transformações que tive que passar para renascer. Para brotar de novo, apesar de tudo. Assim uma singela borboleta colorida pousou na inicial do meu nome, bem no meu pescoço.
Ficava escondida entre meus cabelos. Mas era o suficiente para eu admirar minha ousadia. Juro que achava que ia me contentar com um único risco. Aviso aos navegantes de primeira tatuagem: quando a gente começa a habitar o planeta dos riscados, essa missão é quase impossível. A segunda tatuagem veio da FÉ que me resgatou. Fiquei tão feliz quando minha irmã também rompeu o padrão e estampou a palavra no pulso que combinei de imitá-la. Para contar sobre a terceira e quarta, tenho que voltar para o diálogo com minha mãe.
– O que você vai falar para seus filhos quando eles quiserem fazer uma tatuagem?
Na época do meu primeiro risco, Lucca tinha 10 anos. João apenas 5. E respondi sem hesitar:
– Vou dizer que eles podem fazer a partir dos 18 anos e serem felizes com seus corpos e desejos, independente do olhar e julgamento dos outros.
Cada um é quem sabe o valor das marcas que decide tirar do coração, imprimir na pele e estampar para o mundo. São metáforas da nossa vida em construção
Lucca acabou fazendo a primeira tatuagem um pouco antes, com minha autorização. Cedi para não ser engolida pela ansiedade dele em tempos de isolamento social. Em plena pandemia, aos 17 anos, passamos uma manhã de domingo de máscaras em um estúdio na Cidade Baixa. Saímos de lá ilesos à Covid. Ele com a primeira imagem tribal na perna. Eu com mais duas marcas no corpo. A imagem dos três pequenos CORAÇÕES registrada no pé esquerdo simboliza meus dois filhos e a chegada do novo amor. A felicidade era tanta que o coração saiu pulsando pelo cotovelo esquerdo também.
Aos 45 anos do primeiro tempo, confesso que senti um frio na barriga deitada na maca diante de Rick. Medo da agulha? Nem um pouquinho. Continuei sentindo uma cosquinha gostosa enquanto o desenho surgia apenas na tinta preta. Meu limiar para dor deve ser mesmo fora da curva. Desta vez, estava disposta a ousar e espelhar uma imagem maior e em cores, já que as quatro tatuagens anteriores eram bem discretas. Tive que respirar fundo algumas vezes para ver brotar o jardim colorido na minha pele.
Ainda acho que o que torna tudo suportável – e até mais leve – é entender o processo. Tatuagem é uma dor escolhida. Exige da gente paciência para esperar o tempo certo do desenho – alguns podem levar dias – da cicatrização, alguns cuidados quando a marca acabou de nascer (evitar exposição ao sol, alimentos remosos, como camarão e carne de porco), autocontrole para suportar a coceira enquanto as casquinhas surgem. Ah, e só depois de descamar, é que a gente se encanta mais com o novo risco! Qualquer semelhança com a vida não é mera coincidência. Eu tô amando meu risco! E acreditando na forte tendência de moda de looks com um ombro só no meu segundo tempo de vida.
Cada um é quem sabe o valor das marcas que decide tirar do coração, imprimir na pele e estampar para o mundo. São metáforas da nossa vida em construção. Neste estágio, a opinião do outro não faz a menor diferença. A minha, inclusive, em relação às marcas no corpo alheio. Por esta ótica, continuo não achando bonito, mas entendendo mais sobre os que não deixam espaço em branco de respiro na pele, sedentos por contar sua história.
Pelas sincronicidades da vida, conheci o PodCast de Cris Pàz no mesmo período em que ganhei o presente inusitado de meu filho. Uma amiga, morando agora em outro país, mandou uma mensagem que aqueceu meu coração sobre Amizades Femininas. Acabei escutando sem querer o episódio seguinte: A Crise da Tatuagem. Recomendo que ouçam!
Entre muitas histórias, Cris Pàz conta a decisão de tatuar a palavra ALEGRIA no corpo após a morte do companheiro. Foi seu jeito de transformar a falta em presença. E de lembrar o quanto aprendeu sobre ALEGRIA com o pai do seu filho Francisco. Concordo com Cris: tatuagem pode ser antidepressivo. Tem efeitos muito além da estética.
- Fernanda Carvalho é jornalista, escritora, autora do Livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas.
- E-mail: livroaluzdamaternidade@gmail.com
- Instagram: @fernandacarvalho_cs
Prima que a cada dia, vc possa permear vários entendimentos e a partir daí , se abram novas janelas e que a cada segundo seu jardim floresça com várias coisas boas. Te amo 💓😘
Janelas floridas para todas nós. Obrigada pelo carinho, prima!
Amei e amei mais um texto maravilhoso de minha amiga e colega jornalista Fernanda, bom de ler e muito singelo contando sua história de riscos de Tatoo acabou contando um pouco da minha qdo fiz minha 1 Tatoo, após tristeza misturada c libertação de um casamento de abuso, divórcio e minha Tatoo da gato que é o que eu amo e me dá alegria, sim poderia ser uma borboleta pois nesta época recebi muitas mensagens e figuras desse lindo inseto que tem a ver com transformação, feminilidade e beleza, tb permiti que meu filho fizesse qdo fez 18 anos, tb gosto de ouvir as histórias por detrás das tatoos das pessoas, sempre mostram algo de sua vida, uma metáfora, muitas vezes real, sim, concordo q a gente n para na primeira tatoo, os símbolos e riscos evoluem na nossa vida querendo ser mostrados e contados, sucesso, vitórias, alegrias da nossa vida. Bj pela nova tatoo 😘Simone Caetano
As tatuagens têm sempre muitas histórias, nem sempre reveladas. E como jornalistas e escritoras, a gente não resiste em querer saber mais, né Simone?!
Comecei a ler e fui ficando emocionada, arrepiada até o final . Texto magistral! Belíssima narrativa, sai de suas entranhas da sua alma Parabéns pela excelência dr seu texto! Obrigada por compartilhar comigo tamanha riqueza, essa sua experiência, a qual me identifico. Minha filha fez os traços dela em plena pandemia , desse mesmo jeito, e teve um significado muito especial, que não podia esperar passar. Me vi nesta tatuagem sobretudo da borboleta. Parabéns e um bjo grande
Obrigada pelo comentário. E a gente segue escrevendo nossas histórias – que não só só nossas – no papel, na tela e na pele também.
Parabéns pela atitude e pela bravura de entender e render-se ao encantamento, que surge diante da representatividade dos “riscos”. Iniciei o meu segundo tempo (rs) antes de vc e ainda não tomei essa decisão. Contudo, a vontade é grande! Continue exercendo a autosoberania e seja feliz!😀
Obrigada, amigo! Toda vez que releio essa crônica reacende meu desejo por novos riscos… Eles semprem nascem no tempo certo!
Reflexões importantes brotando dessas flores da pele, borboletas voando sempre mais, e mais longe!
Fernanda, quando meu filho @daniel_pituba começou se tatuar fiquei um tanto preocupado, principalmente pelas críticas familiares. Mas algo me dizia que ele estava certo. Eu sentia que ele estava seguro com sua escolha. Acabou se tornando um tatuador. Nesse momento que estou escrevendo este comentário, minha mulher me informa que ele atendeu um cliente australiano que conheceu seu trabalho em um site e aproveitou pra riscar com ele já que estava turístando em Salvador.
A tatoo mexe com nossos sentidos e já tenho minha primeira, um rádio, e vou me riscar mais.