Por Fernanda Carvalho*
Tem uma imagem fotográfica na minha infância que é muito simbólica para mim. Estou nos braços de minha mãe, aninhada em seu colo. Devia ter dois ou três anos. Dormia um sono solto, sereno. Ela, sentada em uma poltrona, também dormia. Um dos braços largados do lado do corpo; o outro me segurando com a firmeza possível. Cabeça recostada para trás, boca aberta, entregue ao cansaço. Um feixe de luz atravessava nossos corpos na imagem. O brilho do sol de um cair da tarde me faz enxergar um ar sagrado naquela cena, quase uma Pietá, de Michelangelo. Numa perspectiva às avessas, por trás de um filho vivo no colo tem uma mãe exaurida. Se reparar direito, ela está quase pedindo socorro.
Depois que fui mãe, dei ainda mais valor a esta imagem. Não sei onde a fotografia foi parar depois de tantas mudanças, mas segue registrada em minha memória. Revelando tanto sobre entrega, cuidado, amor. Acho que toda mulher entende melhor a mãe depois que uma nova vida lhe atravessa. Não há quem não saia transformada da experiência única da maternidade.
Minha mãe teve três filhos e, depois que casou, não trabalhou fora de casa. Fora, porque no lar a jornada sempre fora exaustiva. Cuidava da casa, do café, do almoço, da janta, de nós, de tudo enquanto meu pai trabalhava. Frequentemente, ele saía quando estávamos dormindo, voltava e nos encontrava já na cama. O dia era longo para meu pai e estreito para minha mãe dar conta das esgarçadas demandas do lar. Como invisibilizar essa jornada? As tarefas domésticas não acabam. Pia é sinônimo de fertilidade. Você deixa todas as louças limpas e, de repente, os pratos sujos se reproduzem. Copos, então…
Na minha geração, a maioria das mulheres não se contentou em ser dona de casa. Exibimos com orgulho a conquista de um lugar no mercado de trabalho. É maravilhoso constatar a força produtiva feminina, nossa capacidade de ocupar com competência qualquer que seja o posto, exercer funções até as antes predominantemente masculinas, assumir cargos de chefia, de liderança, empreender, com aquela criatividade e jogo de cintura de quem ainda encontra tempo para fazer mercado, passar na farmácia ou ir ao salão de beleza. Seja como CLT, MEI, freelancer, executiva ou EUpresa, quando se tem uma empresa mas continua sendo escrava do próprio negócio. O que as mulheres fazem para dar conta da dupla, tripla jornada é inimaginável.
Na minha geração, a maioria das mulheres não se contentou em ser dona de casa. Exibimos com orgulho a conquista de um lugar no mercado de trabalho
Fincar o salto alto no mercado de trabalho foi mesmo uma grande conquista para nós, mulheres. Erguemos diplomas, defendemos tantas bandeiras, tivemos incontáveis bônus, mas quem tá pagando a conta do ônus? Sim, porque o mundo quer que as mulheres trabalhem como se não tivessem filhos e sejam mães como se não trabalhassem. A conta não fecha. E a balança pesa desfavorável para nós.
Já ouvi relatos de amigas extremamente dedicadas ao trabalho que cochilavam no intervalo do almoço sentadas no vaso do banheiro para compensar as horas de sono perdidas com os filhos na noite anterior. Se eles adoecem, são elas queprecisam vestir a roupa de sapo e dar seus pulos para abrir espaço na agenda e levá-los ao médico. E as viroses resolvem chegar nos momentos mais inoportunos. Com a capacidade de ser multitarefa, as mulheres têm uma capacidade única de serem produtivas acompanhando cada passo dos filhos que estão na escola, no transporte, nas aulas d reforço… Como assim ainda não chegouem casa? Não importa a idade, só mudam as preocupações.
E os diagnósticos que traduzem a sobrecarga também: estafa, estresse, transtorno de ansiedade, depressão, burnOUT. Já se fala até em burnON. Enquanto o burnout gera sintomas impossíveis de esconder e que incapacitam para o trabalho, no burnON, os pacientes estão sempre à beira de um colapso mas seguem produtivos, disfarçam o caos com um sorriso amarelo e convivem com um tipo diferente de exaustão que beira a depressão.
Somos maioria na população brasileira, mas ainda enfrentamos um cenário árido no mercado de trabalho, com disparidades gritantes. Recebemos 74,5% do salário dos homens ocupando os mesmos cargos, a cada 4,6 segundos uma mulher é vítima de assédio sexual no ambiente de trabalho e 50% são demitidas nos primeiros dois anos após a licença maternidade. Os dados são da Fundação Getúlio Vargas (FGV). A constatação é diária. Não importa a dedicação, a competência e o valor que uma funcionária tem para uma empresa. Basta ela ousar ser mãe para correr o risco de ficar com o filho nos braços, amamentando e aumentando as estatísticas de desemprego.
Nem sempre essa situação é percebida como absurda por quem vive. Eu mesma só me dei conta de que passei por uma descriminação quando me preparava para ser mãe décadas depois. Era repórter, trabalhava em um jornal da cidade, estava feliz com minha profissão. Durante a gestação de Lucca, não faltei um dia sequer de trabalho. Zero atestado médico, não enjoava nem mesmo nas idas e vindas do carro de reportagem. Foi um momento feliz e produtivo, tanto que ganhei dois prêmios no decorrer da gravidez. No dia seguinte à celebração de um deles, recebi uma ligação de uma colega que trabalhava no periódico concorrente.
Abraçar o mercado de trabalho com filhos no colo é desafiador. Sabe aquela história de assoviar e chupar cana? Tem mulheres que dão conta, ainda que cheguem ao final do dia como verdadeiros bagaços. Outras nem cogitam a possibilidade de ter filhos
O chefe de redação queria conversar comigo. Fui sem expectativas para ouvir a proposta de emprego. A minha barriga atravessou primeiro o caminho da redação até a sala do diretor. Quando me viu, não disfarçou a surpresa. De queixo caído, as palavras e o talento promissor que me fizeram chegar até ali foram convertidos em números frios, no indesejado cálculo da licença-maternidade. Visivelmente sem jeito, ele elogiou meus textos, teve uma conversa amiudada e terminou sem fazer qualquer proposta alegando que seria difícil o RH aprovar a contratação.
Eu, na minha condição privilegiada de mulher branca, empregada, casada, grávida, feliz e satisfeita com o lugar que trabalhava, não lamentei o ocorrido na época. Hoje revejo a situação com outros olhos. Um homem passaria por isso? Veria uma proposta de emprego desaparecer porque vai ser pai? Quantas mulheres não têm as portas fechadas justo no momento em que mais precisam trabalhar? Quantas mães solo são preteridas em uma entrevista de emprego diante de candidatas sem filhos? O critério deixa de ser apenas a competência. E não raro, a recrutadora que conduz a seleção é uma mulher.
Abraçar o mercado de trabalho com filhos no colo é desafiador. Sabe aquela história de assoviar e chupar cana? Tem mulheres que dão conta, ainda que cheguem ao final do dia como verdadeiros bagaços. Outras nem cogitam a possibilidade de ter filhos. E elas têm todo o direito de não querer, mas continuam sendo pressionadas socialmente para viverem a maternidade. Tem as que priorizam a carreira para – só depois – pensar no planejamento familiar. Quando pensam muito, desistem. Ou quando enfim decidem tentar ter filhos com a profissão já consolidada, se dão conta de que o relógio biológico está quase parando. Correm contra o tempo para congelar óvulos, investir o que ganharam em fertilização in vitro ou abraçam a maternidade pela nobre via da adoção.
Nenhuma das escolhas é simples. O caminho que vem depois das escolhas, sejam elas conscientes ou não, muito menos. Sem querer romantizar nem demonizar a maternidade, não é nada, nada fácil criar filhos e ser bem sucedida profissionalmente. Mas – claro – que é possível. Em uma das muitas Rodas de Conversas que tenho realizado depois do lançamento do meu livro, conheci Conceição Costa e Silva. Frágil e delicada, ela formou em História na UFBA na década de 70. Conheceu o marido e também historiador no ambiente de trabalho.
Ele atuou em sala de aula, ela sempre se dedicou às pesquisas. Vivem até hoje uma história de amor, com dois filhos. No ambiente prioritariamente masculino em que trabalhava, Conceição contava com a compreensão dos colegas para sair mais cedo da repartição quando os filhos eram bebês. Pensava que não ia ter leite, mas amamentou por quase dois anos, sem deixar de nutrir também a profissão. Desdobrava-se para dar conta do binômio trabalho-família, que hoje cresceu com a chegada do primeiro neto.
Depois de mais de 40 anos de dedicação, Conceição está aposentada. Confessa que teve medo do vazio. Da falta de ocupação, mesmo ainda cuidando do marido acamado, dedicando tempo aos filhos adultos e aos paparicos com o neto.Amava tanto o que fazia que, aos 74 anos, está de volta. É voluntária na biblioteca do Museu de Arte da Bahia (MAB). A vida de Conceição, e de tantas outras mulheres incríveis que conheço, é uma lição. Ser mãe dá trabalho e demanda, acima de tudo, amor.
*Fernanda Carvalho é jornalista, escritora, autora do Livro A Luz da Maternidade – Relatos de Parto sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas.
E-mail: livroaluzdamaternidade@gmail.com
Instagram: @fernandacarvalho_cs
Perfeito Fernanda, ser mãe dar muito trabalho, mas é Divino, oportunidade que damos ao espirito de reencarnar e evoluir